terça-feira, dezembro 2

Na língua dos pássaros uma expressão tinge a seguinte.
Se é vermelha tinge a outra de vermelho.
Se é alva tinge a outra dos lírios da manhã.
É língua muito transitiva a dos pássaros.
Não carece de conjunções nem de abotoaduras.
Se comunica por encantamentos.
E por não ser contaminada de contradições
A linguagem dos pássaros
Só produz gorjeios.

Manoel de Barros


Há um vilarejo ali
Onde areja um vento bom
Na varanda, quem descansa
Vê o horizonte deitar no chão
Pra acalmar o coração
Lá o mundo tem razão

Terra de heróis, lares de mãe
Paraíso se mudou para lá
Por cima das casas, cal
Frutas em qualquer quintal
Peitos fartos, filhos fortes
Sonho semeando o mundo real
Toda gente cabe lá
Palestina, Shangri-lá

Vem andar e voa !

Lá o tempo espera
Lá é primavera
Portas e janelas ficam sempre abertas
Pra sorte entrar



Em todas as mesas, pão
Flores enfeitando
Os caminhos, os vestidos, os destinos
E essa canção



Tem um verdadeiro amor
Para quando você for

Vem andar e voa

Vilarejo – Marisa Monte



"Para mim a vida é tudo menos uma chama fugaz."

George Bernard Shaw


Tropecei no alfabeto logo ao nascer, caí no verbo
Invejei poetas, dizeres ímpares
Palavras seculares, versos românticos
Invoquei-os
Não ouvi respostas
Apenas o eco do silêncio
Percebi então que faço melhor do que eles
Aprendi a florir flores
A salgar o sal e a adoçar o doce com a entrega de palavras
Que ainda não nasceram
As mesmas que me habitam a alma
Aplaudi-me
Percebi que melhor que ser poeta,
É ser palavra


Mia Couto

segunda-feira, dezembro 1

Os meninos humildes crescem no chão
que é o melhor lugar para crescer.
Tu vais crescer no chão
sobre as pedras da eira que há na tua casa.
Há também uma pinheira grande.
Aprenderás a brincar com as sombras da pinheira
olharás uma pinha cair no calor e rolar pelas ervas.
Hás-de apanhá-la nas tuas mãos
e atirá-la num gesto descuidado.
Em Agosto virão os pombos pousar na pinheira
Poderás acompanhá-los ao longe no seu voo preciso, calculado.
Ao partir - verás que sempre se demoram pouco -
vais compreender que há em todas as coisas uma nervura débil
e à sua volta se desenha um anelo fugaz
onde dançam cores formas pontos e fantasmas.
Tudo aparece e desaparece
se fechares os olhos e logo os abrires
já não verás o mesmo: um movimento de seda passou entretanto
levando a poeira dos instantes e deixando em ti
uma sombra a esvoaçar sem objecto.
Aprenderás que essa sombra é a saudade.
Há um viveiro de plantas à beira do caminho
que vem da tua casa.
É na curva larga do caminho, no campo que lhe fica sobranceiro.
Lá crescem tílias bétulas faias e catalpas
e cedros e plátanos, e o pequeno ácer.
Verás como crescem devagar
se vestem e despem de folhagem
e depois são levadas para junto das casas.
Estou feliz por ti
vais guardar todas estas coisas no teu coração humilde.
Crescerás no chão que é o melhor lugar para crescer
crescerás com ternura.

Nuno Higino