sábado, agosto 8

Todo Se Transforma


Teu beijo fez calor
Logo do calor, movimento
Logo a gota do suor
Que se fez vapor, logo vento
Que em um canto da rioja
Moveu a aleta de um moinho
Enquanto pisavam o vinho
Que bebeu tua boca vermelha

Tua boca vermelha na minha
A taça que gira em minha mão
Enquanto o vinho cai
Soube que de algum distante
Canto de outra galáxia
O amor que me daria,
Transformado voltaria,
Um dia a agradecer

Cada um dá o que recebe
E logo recebe o que dá
Nada é mais simples,

Não há outra norma,

Nada se perde tudo se transforma

O vinho que eu paguei
Com aquele euro italiano
Que havia estado em um vagão,
Antes de estar em minhas mãos
E antes disso em Torino, E antes de Torino em Prato,
Onde fizeram meu sapato
Sobre o qual cairia o vinho

Sapato que em algumas horas
Buscarei debaixo da sua cama
Com as luzes da aurora
Junto a tuas sandálias planas
Que compraste aquela vez
Em Salvador na Bahía
Onde a outro deu o amor
Que hoje eu te devolveria .....

Cada um dá o que recebe
E logo recebe o que dá
Nada é mais simples
Não há outra norma
Nada se perde
Tudo se transforma

Jorge Drexler





A paciência ,
é um gato a engolir a tarde num trago de ócio,
esse casulo suspenso sob a esteira das acácias onde o amarelo amadurece , aguardando, sabe-se lá que carta de destinos, no sono circular das esperas e dos deslumbramentos.

Havia de me pertencer esse saber felino de só pisar a erva no rasto seguro
e
levitante dos instintos e dos pressentimentos.

Havia de cobiçar com tamanha agilidade, o espólio da serenidade que só nos confins dos seus olhares de vidro solar se pode tomar quinhão.

Só com a paciência voltejante dos gatos se podem beber as paisagens incontempláveis,
as que se movem do êxtase da água para os domínios assombrosos do coração.

Paulo Ferreira Borges

you said Is
there anything which
is dead or alive more beautiful
than my body, to have in your fingers
(trembling ever so little)?
Looking into
your eyes Nothing, I said, except the
air of spring smelling of never and forever.

...and through the lattice which moved as
if a hand is touched by a
hand (which
moved as though
fingers touch a girl's
breast,
lightly)
Do you believe in always, the wind
said to the rain
I am too busy with
my flowers to believe, the rain answered.

(e.e. cummings)

sexta-feira, agosto 7


casa com cachorro brabo

meu anjo da guarda

abana o rabo




P. Leminski

ÁRVORE GENEALÓGICA DO VERÍSSIMO


- Mãe, vou casar!
- Jura, meu filho?! Estou tão feliz! Quem é a moça?
- Não é moça. Vou casar com um moço. O nome dele é Murilo.
- Você falou Murilo... Ou foi meu cérebro que sofreu um pequeno surto psicótico?
- Eu falei Murilo. Por que, mãe? Tá acontecendo alguma coisa?
- Nada, não... Só minha visão que está um pouco turva. E meu coração,que talvez dê uma parada. No mais, tá tudo ótimo.
- Se você tiver algum problema em relação a isto, melhor falar logo...
- Problema? Problema nenhum. Só pensei que algum dia ia ter uma nora...Ou isso.
- Você vai ter uma nora. Só que uma nora... meio macho. Ou um genro meio fêmea. Resumindo: uma nora quase macho, tendendo a um genro quase fêmea...
- E,.. quando eu vou conhecer o meu... a minha.. O Murilo?
- Pode chamar ele de Biscoito. É o seu apelido.
- Tá ! Biscoito... Já gostei dele.. Alguém com esse apelido só pode ser uma pessoa bacana. Quando o Biscoito vem aqui?
- Por quê?
- Por nada. Só pra eu poder desacordar seu pai com antecedência.
- E,... você acha que o Papai não vai aceitar?
- Claro que vai aceitar! Lógico que vai. Só não sei se ele vai sobreviver. Mas isso também é uma bobagem. Ele morre sabendo que você achou sua cara-metade. E olha que espetáculo: as duas metades com bigode.
- Mãe, que besteira! Hoje em dia praticamente todos os meus amigos são gays.
- Só espero que tenha sobrado algum que não seja, pra poder apresentar pra tua irmã.
- A Bel já tá namorando.
- A Bel? Namorando?! Ela não me falou nada.. Quem é?
- Uma tal de Veruska.
- Como?
- Veruska...
- Ah, bom! Que susto! Pensei que você tivesse falado Veruska.
- Mãe!!
-Tá, tá... Tudo bem... Se vocês são felizes... Só fico triste, porque não vou ter um neto.
- Por que não? Eu e o Biscoito queremos dois filhos. Eu vou doar os meus espermatozóides. E a ex-namorada do Biscoito vai doar os óvulos.

- Ex-namorada? O Biscoito tem ex-namorada?
- Quando ele era hétero... A Veruska.
- Que Veruska?
- Namorada da Bel...
- Peraí. A ex-namorada do teu atual namorado... É a atual namorada da tua irmã. Que é minha filha também... Que se chama Bel. É isso? Porque eu me perdi um pouco...
- É isso. Pois é... A Veruska doou os óvulos. E nós vamos alugar um útero.
- De quem?
- Da Bel.
- Mas, logo da Bel! Quer dizer então... que a Bel vai gerar um filho teu e do Biscoito. Com o teu espermatozóide e com o óvulo da namorada dela, que é a Veruska
- Isso.
- Essa criança, de uma certa forma, vai ser tua filha, filha do Biscoito, filha da Veruska e filha da Bel.
- Em termos... a criança vai ter duas mães: você e o Biscoito. E dois pais: a Veruska e a Bel.
- Por aí... por outro lado, a Bel, além de mãe, é tia... ou tio... Porque é tua irmã.
- Exato. E ano que vem vamos ter um segundo filho. Aí, o Biscoito é que entra com o espermatozóide. Que dessa vez vai ser gerado no ventre da Veruska... Com o óvulo da Bel. A gente só vai trocar.
- Só trocar, né? Agora, o óvulo vai ser da Bel. E o ventre da Veruska.
- Exato!
- Agora, eu entendi! Agora eu realmente entendi...
- Entendeu o quê?
- Entendi que é uma espécie de swing dos tempos modernos!
- Que swing, mãe?!
- É swing, sim! Uma troca de casais... Com os óvulos e os espermatozóides, uma ora no útero de uma, outra hora no útero de outra..
- Mas...

- Mas, uns tomates! Isso é um bacanal de última geração! E pior, com incesto no meio!
- A Bel e a Veruska só vão ajudar na concepção do nosso filho, só isso...
- Sei! E quando elas quiserem ter filhos...
- Nós ajudamos.
- Quer saber ? No final das contas não entendi mais nada. Não entendi quem vai ser mãe de quem, quem vai ser pai de quem, de quem vai ser o útero, o espermatozóide. .. A única coisa que eu entendi é que...
- Que...?
- Fazer árvore genealógica daqui pra frente vai ser foda!


Luiz Fernando Veríssimo

domingo, agosto 2








A diferença

Aquela que perturba
Uma preferência, um estado da alma
Uma circunstancia

Um corpo-a-corpo
Em desacordo com as pessoas, bem pensando...
Os hábitos comuns...

Suas peles jamais temerão as diferenças
Elas se reconhecem, se tocam
Assim como estes dois homens que dançam

Sem nunca falar
Sem nunca gritar
Eles se amam em silêncio
Sem nunca mentir, nem se voltar contra ninguém
Eles se tornam confidentes
Se vocês soubessem como eles não estão nem aí para suas injúrias
Eles preferem o amor
Sobretudo a verdade
do que nossos murmurios

Eles falam sempre
sobre as outras pessoas
que se amam tanto
que se amam, como chamamos, "normalmente"
Desta criança tão ausente
Deste mal que está no sangue
Que fere e mata... tão livremente

Seus olhos jamais se afastarão por negligencia
Eles apenas se reconhecem, e se familiarizam
Assim como estas duas mulheres, que dançam...

Sem nunca falar
Sem nunca gritar
Elas se amam em silêncio
Sem nunca mentir, nem se voltar contra ninguém
Elas se tornam confidentes
Se vocês soubessem como eles não estão nem aí para suas injúrias
Eles preferem o amor
Sobretudo a verdade
do que nossos murmurios

De Verlaine à Raimbaud
Quando paramos pra pensar...
Nos toleramos esta excepcional diferença!

Sem nunca falar
Sem nunca gritar
Eles se amam em silêncio
Sem nunca mentir, nem se voltar contra ninguém
Eles se tornam confidentes
Se vocês soubessem como eles não estão nem aí para suas injúrias
Eles preferem o amor
Sobretudo a verdade
do que nossos murmurios

A diferença...
Quando paramos pra pensar...
Qual a diferença?