sexta-feira, maio 29

Faz de Conta




- Faz de conta que sou abelha.
- Eu serei a flor mais bela.
- Faz de conta que sou cardo.
- Eu serei somente orvalho.
- Faz de conta que sou potro.
- Eu serei sombra em Agosto.
- Faz de conta que sou choupo.
- Eu serei pássaro louco,
pássaro voando e voando
sobre ti vezes sem conta.
- Faz de conta, faz de conta.

Eugénio de Andrade
Diz-me a tília a cantar: "Eu sou sincera,
Eu sou isto que vês: o sonho, a graça,
Deu ao meu corpo, o vento, quando passa,
Este ar escultural de bayadera...

E de manhã o sol é uma cratera,
Uma serpente de oiro que me enlaça...
Trago nas mãos as mãos da Primavera...
E é para mim que em noites de desgraça

Toca o vento Mozart, triste e solene,
E à minha alma vibrante, posta a nu,
Diz a chuva sonetos de Verlaine..."

E, ao ver-me triste, a tília murmurou:
"Já fui um dia poeta como tu...
Ainda hás de ser tília como eu sou..."

Florbela Espanca . "Charneca em Flor

Algo existe


Algo existe num dia de verão,
No lento apagar de suas chamas,
Que me impele a ser solene.
Algo, num meio-dia de verão,
Uma fundura – um azul – uma fragrância,
Que o êxtase transcende.
Há, também, numa noite de verão,
Algo tão brilhante e arrebatador
Que só para ver aplaudo -
E escondo minha face inquisidora
Receando que um encanto assim tão trêmulo
E sutil, de mim se escape.

Emily Dickinson

tradução de Lúcia Olinto

A love so beautiful


Um amor tão lindo

[...]
Um amor tão lindo
Um amor tão livre
Um amor tão lindo

Um amor por você e por mim
E quando penso em você
Eu apaixono-me novamente






Qualquer música, ah, qualquer,
Logo que me tire da alma
Esta incerteza que quer
Qualquer impossível calma!


Qualquer música – guitarra,
Viola, harmônio, realejo…
Um canto que se desgarra…
Um sonho em que nada vejo…


Qualquer coisa que não vida!
Jota, fado, a confusão
Da última dança vivida…
Que eu não sinta o coração!


Fernando Pessoa


Há noites que eu não posso dormir de remorso
por tudo o que eu deixei de cometer.


Mário Quintan
a

quarta-feira, maio 27


[Ressuscita-me]

" ... Então,
de todo amor não terminado
seremos pagos
em inumeráveis noites de estrelas.

Ressuscita-me,
nem que seja só porque te esperava
como um poeta,
repelindo o absurdo quotidiano!

Ressuscita-me,
nem que seja só por isso!
Ressuscita-me!
Quero viver até o fim o que me cabe!

Maiakovski, em O Amor

Nosso amor é impuro
como impura é a água
e tudo quanto nasce
e vive além do tempo.

Minhas pernas são água,
as tuas são luz
e dão a volta ao universo
quando se enlaçam
até se tornarem deserto e escuro.
E eu sofro de te abraçar
depois de te abraçar para não sofrer.

E toco-te
para deixares de ter corpo
e o meu corpo nasce
quando se extingue no teu.

E respiro em ti
para me sufocar
e espreito em tua claridade
para me cegar,
meu Sol vertido em Lua,
minha noite alvorecida.

Tu me bebes
e eu me converto na tua sede.
Meus lábios mordem,
meus dentes beijam,
minha pele te veste
e ficas ainda mais despido.

Pudesse eu ser tu
e em tua saudade ser a minha própria espera.

Mas eu deito-me em teu leito
quando apenas queria dormir em ti.

E sonho-te
quando ansiava ser um sonho teu.

E levito, voo de semente,
para em mim mesmo te plantar
menos que flor: simples perfume,
lembrança de pétala sem chão onde tombar.

Teus olhos inundando os meus
e a minha vida, já sem leito,
vai galgando margens
até tudo ser mar.
Esse mar que só há depois do mar.

Mia Couto

domingo, maio 24

Se Você Fosse um Veleiro



Se você fosse um vaqueiro eu seguiria na sua pista,
Se você fosse um pedaço de madeira eu o pregaria ao chão.
Se você fosse um veleiro eu o dirigiria à costa.

Se você fosse um rio eu nadaria você,
Se você fosse uma casa eu viveria em você todos os meus dias.
Se você fosse um pregador eu começaria a modificar os meus modos.

Às vezes acredito no destino,
Mas as oportunidades que criamos,
Sempre parecem soar mais verdadeiras.
Você arriscou em me amar,
Eu arrisquei em amar você.

Se estivesse na cadeia sei que você me soltaria
Se eu fosse um telefone você me tocaria todo o dia
Se estivesse na dor sei que você me cantaria canções calmantes.


Às vezes acredito no destino,
Mas as oportunidades que criamos,
Sempre parecem soar mais verdadeiras.
Você arriscou em me amar,
Eu arrisquei em amar você.


Se eu estivesse com fome você me alimentaria
Se eu estivesse na escuridão você me guiaria à luz
Se eu fosse um livro sei que você me leria todas as noites

Se você fosse um vaqueiro eu seguiria na sua pista,
Se você fosse um pedaço de madeira eu o pregaria ao chão.
Se você fosse um veleiro eu o dirigiria à costa.
Se você fosse um veleiro eu o dirigiria à costa



Um homem tem sempre medo de uma mulher que o ame muito.

Bertold Brecht