sábado, outubro 30


... cantando eu convoco um certo homem... um apanhador de pérolas, vasculhador de maresias.
Esse homem acendeu a minha vida e ainda hoje eu sigo por iluminação desse sentimento...
... Só esse homem servia para meu litoral, todas vivências que eu tivera eram ondas que nele desmaiavam...
... Na despedida, ele me pediu que cantasse...
Minha vida foi um esperadouro.
Estive assim, inclinada como praia, mar desaguando em rio,... mar naufragado...
Demorasse assim sua ausência, a espera não se sujava com desespero.
Me socorria a lembrança de seus braços como se fossem a parte do meu próprio corpo que me faltasse resgatar.
Para sempre me ficou esse abraço...
Depois desse abraço trocou-se, no mundo, o fora pelo dentro.
Agora, é dentro que tenho pele.
Agora, meus olhos se abrem apenas para as funduras da alma.
Nesse reverso, a poeira da rua me suja é o coração.
Vou perdendo a noção de mim, vou desbrilhando.
E se eu peço que ele regresse é para sua mão peroleira me descobrir ainda cintilosa por dentro.
Todo este tempo me madreperolei, me enfeitei de lembrança.
Mas o homem de minha paixão se foi demorando tanto que receio me acontecer como à ostra que vai engrossando tanto a casca que morre dentro de sua própria prisão. Certamente, ele passará por mim e não me reconhecerá.
Minha única salvação será, então, cantar, cantar como ele me pediu.
Entoarei a mesma canção da despedida.
Para que ele me confirme entre as demais conchas e se debruce em mim para me levar...

Mia Couto