sexta-feira, janeiro 2

quinta-feira, janeiro 1

Vejo-te da porta que se abre para o jardim. Corres descalça na relva ainda orvalhada
da manhã. Estendes-me as mãos. E os meus dedos que sempre foram curtos
alongam-se para te agarrar. Para não te deixar cair. Essa força em mim, que
desconhecia, prende-te as mãos que são metade das minhas. Metade de mim. Escuta.
Queria contar-te uma estória. Daquelas que guardamos a vida toda esperando o
momento que pensamos certo, sem que ao certo saibamos como ele nos irá surgir. E
por isso esperamos. Até que o definitivo do tempo em que habitamos, nos mostra que
esperámos uma vida inteira apenas por um breve instante. Onde exorcizamos esse
medo de dizermos em voz alta o que sentimos. E por isso quero-te contar essa estória.
Que fala de mim, de ti. Do teu, meu, nosso mundo. Uma história de mulher, com ou
sem nome. Não interessa. Uma estória escrita em cores vulgares, iguais em toada e
tempo a tantas outras que correm para além das janelas em que nos encerramos.
Uma estória que começou muito antes da tua ter começado. Esse capítulo, aberto no
dia nosso encontro, desvendou-me palavras desenhadas de um sépia-sentimento que
desconhecia. Redesenhei-me nesse dia, em que te puseram sobre o meu peito, de
mãos minúsculas ainda cerradas para o mundo. Redesenheime para que te pudesse
ensinar que se caminha de mãos abertas sobre essa erva orvalhada onde corres
agora de pés descalços. Que o universo nos corre nas mãos, e que são elas que o
sorvem, mais ou menos sôfregas. Que a luz dos nossos sonhos se refracta nessa
torrente que nos pinga das mãos. Que te dirão que atrás dessas luzes se escondem os
tons sombrios das vielas dos nossos medos. E que é verdade. Mas que também é
verdade que essas vielas se atravessam de olhos e passos firmes. E que não há muros
intransponíveis. Nem os cobertos de hera brava sem tempo, que nos atormentam
com a saudade do que deveria ter sido. Que esse vento que faz te corar as faces, se
respira de braços abertos. Que a beleza encerrada nesse mundo de espinhos se abraça
no dia em que se descobre que sussurro doce de um oboé nos faz emocionar. Que
descobrimos que podemos amar, não só de alma, mas também de corpo completo.
Que transpiramos prazer por essa pele que apenas quer tocada.Por isso me
redesenhei, a partir das águas que saíram de dentro daquela que até então só sabia
ser filha. E pari mais do que umas mãos pequeninas, pari esta vontade imensa de te
repetir incessantemente, insanamente, que te amo para além do que as minhas mãos
conseguem atingir. Que te amo para além das asas que te quero ensinar a abrir.
Porque filha, o mundo não é mais do que um azul imenso, feito de aguarela de sonhos
e vontade, por onde corremos descalços, sobre erva orvalhada.

Cristina Nobres Soares