sábado, fevereiro 21



Madu Lopes

"É inacreditável", diziam os forasteiros que, atraídos pela sua fama, corriam a Sakata para ver ou comprar os seus kakemonos. De facto, estavam ali todas as delícias da cor, todos os segredos da vida. Os mais incrédulos mexiam-lhes levemente, certificando-se assim que não havia nada mais do que seda ou papel e tintas. Outros ficavam horas seguidas de olhar pregado no desenho, esperando o súbito movimento de todas as coisas suspensas (que se derramassem os lagos, cantassem os pássaros ou se inclinassem os ramos das árvores às carícias da brisa).
(...)

Assim vivia e trabalhava incansavelmente Hokusai, alheio à fama e à crescente admiração que os seus desenhos alcançavam. Quando alguém mostrou um deles ao Imperador, grande amante da arte da pintura, este ficou de tal modo impressionado que ordenou imediatamente que trouxessem à sua presença "o velho doido pelo desenho".
Foi assim que certa manhã, seis cavaleiros da Guarda Imperial atravessaram a galope a pacata aldeia de Sakata e pararam diante da porta duma pequena casa de madeira e colmo. Dois dias depois, Hokusai e a inseparável Hana-San estavam na presença do Imperador.

"Podes ficar com a tua filha no meu palácio o tempo que quiseres" - disse ele, acrescentando, "mas quero que faças aqui o mais belo, o mais perfeito dos teus desenhos."
Hokusai aceitou o honroso convite e durante cerca de um ano desenhou vagarosamente sobre a seda cinzenta um fundo verde de jardim banhado por uma luz crepuscular e, em pleno voo, uma elegante cegonha. Era mais do que perfeito, mais do que real aquela aguarela.
(...)
Na manhã
seguinte estava o palácio em alvoroço. A cegonha desenhada por Hokusai desaparecera misteriosamente e só ele, conformado, parecia compreender o sucedido. Porém, como o Imperador se mostrasse inconsolável desenhou outra no mesmo local, igualmente perfeita e igualmente desaparecida na manhã seguinte, apesar de guardada por trinta soldados armados. E se não estava no kakemono, onde estariam então, já que, procuradas por toda a parte, nunca foram encontradas?
Quando o Imperador pediu ao velho que desenhasse também gaiolas para as suas cegonhas, já que parecia ser a única forma de as reter, ele recusou, dizendo: "a arte não é uma prisão".

Álvaro Magalhães, As Lágrimas do Céu

Um comentário:

Paco Bailac disse...

He venido a tu casa para dejarte un saludo...


pacobailacoach.blogspot.com