sábado, junho 12

O QUE EU GOSTO





Gosto do garfo, apetece-me a idéia de que ele não precisa da faca para sobreviver. Não gosto de começar pelas verduras. Gosto de comer com pão. Não gosto de elevador. Gosto de escadas envidraçadas. Gosto de lápis mais do que canetas. Não gosto de parque. Gosto de praças esquecidas. Não gosto de sinais de trânsito. Gosto de pichações. Não gosto de passarelas. Gosto de calçadas largas, onde não me sinto pressionado a tomar uma decisão. Não gosto de quem finge voz infantil para falar com as crianças. Gosto de pedalar descalço como se fosse praia. Não gosto de chuva mentirosa, sem relâmpagos. Gosto de abraçar com efusão e fracassar despedidas. Não gosto de quem conversa dando tapinhas nos ombros. Gosto da sinceridade de um café. Não gosto de aperitivos. Gosto de escutar música para curvar a boca.

Não gosto de apresentações. Gosto de abrir vinho. Não gosto de terminar o vinho. Gosto quando desmarco um encontro para me encontrar por acidente. Não gosto de guarda-chuva. Gosto de livros com sobrecapa. Não gosto de nadar sozinho. Gosto de nadar sem raias para respirar. Não gosto de portas. Gosto de me falhar em janelas. Gosto de reparar primeiro os pés das pessoas, para calçar meus olhos e subir devagar. Não gosto de poltronas. Gosto de rede. Não gosto de colchão no chão.Gosto de água-furtada, abrir um piano, fechar o estojo de um violino. Não gosto de porões. Gosto de gavetas. Não gosto de armários.

Gosto de adormecer sem vontade. Não gosto de dormir cedo. Gosto de abrir cartas. Não gosto de procurar o CEP. Gosto de ter um lugar para sofrer escondido. Não gosto de chorar em público. Gosto de água com gás. Não gosto de trocar o gás. Gosto de repor as lâmpadas. Não gosto de lanternas. Gosto de velas e lamparinas, do clarão cansado. Não gosto de gente educada em excesso. Gosto do humor discreto. Não gosto de ser chamado pelas costas. Gosto quando trocam o meu nome. Não gosto de telegramas. Gosto de telefonemas longos. Não gosto de rodapés. Gosto de letra tremida. Não gosto de letras de fôrma. Gosto de guardanapo nos joelhos. Não gosto de mesas de plástico. Gosto da ironia. Não gosto do cinismo. Gosto de ver um filme pela metade. Não gosto de esperar os créditos finais. Gosto de chegar atrasado para ser pontual. Não gosto da tristeza. Gosto de gritar para as paredes.

Não gosto quando tem eco. Gosto de misturar as chaves. Não gosto de fotos em álbuns. Gosto de fotos soltas. Não gosto de assobiar. Gosto de acenar. Não gosto de palitos nos dentes. Gosto de mapas antigos. Não gosto de filas. Gosto de ler no trem. Não gosto de lembrar das senhas. Gosto de esquecer as dívidas. Não gosto de limpar as telhas. Gosto das escamas das casas. Não gosto de conferir os bolsos. Gosto da imperfeição. Não gosto do acúmulo. Gosto de inventar a letra quando estou cantando. Não gosto do travessão.

Gosto do ponto e vírgula.



Fabrício Carpinejar

Um comentário:

Martha Helena disse...

Adoro Carpinejar...meu último post foi dele também:"Cinco coisinhas para não fazer no dia dos namorados"

Mil beijos