sábado, junho 20

As mulheres, durante séculos, serviram de espelho aos homens por possuírem o poder mágico e delicioso de reflectirem uma imagem do homem duas vezes maior que o natural.

Virginia Woolf


É que agora – aqui dentro – a casa foi ficando meio empoeirada, como se toda essa mobília sentimental não tivesse sendo mais usada, a janela foi deixada aberta e tanto vento foi passando, levando as cores dos retratos e deixando o pó como ressarcimento.Aqui em casa não tem mais conforto, tudo virou incômodo, e às vezes nem em casa eu me sinto. Não tem mais abraço, não tem mais teto para pintar de sonhos toda a noite, nem tapete colorido para deitar no domingo. Tudo daqui foi sumindo, não tem mais ninguém nessa casa, só um eco se espalha quando eu volto e os passos ficam rangendo o assoalho, e fica uma sensação estranha de ver cinza onde tudo foi festa e euforia. Na porta de entrada eu sempre pedia um beijo, até que um dia o beijo foi de despedida.

Cáh Morandi

sexta-feira, junho 19


Em todas as almas há coisas secretas cujo segredo é guardado até à morte delas. E são guardadas, mesmo nos momentos mais sinceros, quando nos abismos nos expomos, todos doloridos, num lance de angústia, em face dos amigos mais queridos - porque as palavras que as poderiam traduzir seriam ridículas, mesquinhas, incompreensíveis ao mais perspicaz. Estas coisas são materialmente impossíveis de serem ditas. A própria Natureza as encerrou - não permitindo que a garganta humana pudesse arranjar sons para as exprimir - apenas sons para as caricaturar. E como essas ideias-entranha são as coisas que mais estimamos, falta-nos sempre a coragem de as caricaturar. Daqui os «isolados» que todos nós, os homens, somos. Duas almas que se compreendam inteiramente, que se conheçam, que saibam mutuamente tudo quanto nelas vive - não existem. Nem poderiam existir. No dia em que se compreendessem totalmente - ó ideal dos amorosos! - eu tenho a certeza que se fundiriam numa só. E os corpos morreriam.

Mário de Sá-Carneiro, in 'Cartas a Fernando Pessoa'

O vento do meu espírito
soprou sobre a vida.
E tudo que era efêmero
se desfez.
E ficaste só tu, que és eterno...


[ Cecília Meireles ]



O Perfumador de Flores
(Heinze)

Eis minha vida
que ninguém conhece;
minha eterna lida
suave parecendo prece...
Não tenho nome;
nem tenho cor;
não passo fome;
vivo de flor...
Sou um designado:
o Perfumador de Flores;
vou nos jardins, vasos,
buquês de amores...
Porém, camélias,
dálias e margaridas,
preferem ser sérias,
um tanto contidas...
Transfiro, sendo assim,
o perfume que delas era,
para a rosa e o jasmim
fazerem primavera...
Ao sentires fragrância
numa flor ou no ar,
saiba que minha ânsia
vive por perfumar...

Poema Quebrado
Oswaldo Montenegro


Eu era apenas rio
Esperando que você navegasse
Poema quebrado no frio
Num salão vazio
Esperando que você recitasse
Eu era manhã cinzenta
Esperando de você a aurora
Um lobo de olhar em brasa
Te vendo em casa
(e o lobo do lado de fora)
E eu era, quem diria
A melodia que jamais compusera
E eu, que jamais daria
Era o verbo dar
Dizendo assim: quem dera!
Então não vá embora
Agora que eu posso dizer
Eu já era o que sou agora
Mas agora gosto de ser

quinta-feira, junho 18


então. sempre ouvi dizer a vida a dois é um osso duro de roer
e de enterrar e esgravatar para cheirar e confirmar o lugar
o asilo o lar doce lar
excepção feita aos onanistas
só ligam ás fotos das revistas

tu lavas eu limpo
tu sonhas eu durmo
tu branco e eu tinto
tu sabes eu invento
tu calas eu minto
arrumas e eu rego
retocas eu pinto
cozinhamos para três
tu mordes eu trinco
detestas eu gosto
magoas eu brinco

mas se me morres eu sinto




Cerimônias de Rui Reininho

Proposta

- Não quero trabalhar, nem estudar, o que eu quero é namorar- disse a princesa e cruzou os braços.Dormia de braços cruzados e tinham de lhe dar de comer porque a princesa só podia abrir os braços para abraçar o namorado e nao havia nenhum namorado para ela.Quando se acabou o dinheiro, acabaram-se as criadas e acabou-se a comida. A princesa morreu de fome, muito suja, mas sempre de braços cruzados.E nem os cangalheiros nem os médicos legistas lhe conseguiram descruzar os braços porque nem os cangalheiros nem os médicos legistas eram o namorado da princesa de braços cruzados porque nao havia nenhum namorado para ela.Foi conservada em formol dentro de um frasco de vidro transparente para ser mostrada aos visitantes do Museu de História Natural. Na placa que dá informaçoes sobre o conteúdo do frasco está escrito em latim: "só descruzará os braços quando lhe aparecer um namorado". Todos no Museu têm a esperança de que um dia um visitante saiba latim e seja namorado da princesa de braços cruzados.Mas a empregada do balcão do bar do Museu, menos positivista do que o resto do pessoal, resolveu fazer o mesmo que a princesa de braços cruzados. Por isso não há bicas para ninguém.



a princesa de braços cruzados do livro a bela acordada de adília lopes


Se ao menos soubesses tudo o que eu não disse





Se ao menos soubesses tudo o que eu não disse
ou se ao menos me desses as mãos como quem beija
e não partisses, assim, empurrando o vento
com o coração aflito, sufocado de segredos;
se ao menos percebesses que eram nossos
todos os bancos de todos os jardins;
se ao menos guardasses nos teus gestos essa bandeira de lirismo
que ambos empunhamos na cidade clandestina
Quando as manhãs cheiravam a óleo e a flores
e o inverno espreitava ainda nas esquinas como uma criança tremendo;
se ao menos tivesses levado as minhas mãos para tocar os teus dedos
para guardar o teu corpo;
se ao menos tivesses quebrado o riso frio dos espelhos
onde o teu rosto se esconde no meu rosto
e a minha boca lembra a tua despedida,
talvez que, hoje, meu amor, eu pudesse esquecer
essa cor perdida nos teus olhos.


Joaquim Pessoa

A canção do delirante Aengus


Eu fui para uma floresta de nogueiras,
Porque minha mente estava inquieta,
Eu colhi e limpei algumas nozes,
E apanhei uma cereja, curvando o seu fino ramo;
E, quando as claras mariposas estavam voando,
Parecendo pequenas estrelas, flutuando erráticas,
Eu lancei framboesas, como gotas, em um riacho
E capturei uma pequena truta prateada.
Quando eu a coloquei no chão
E fui soprar para reativar as chamas,
Alguma coisa moveu-se e eu pude ouvir,
E, alguém me chamou pelo meu nome:
Apareceu-me uma jovem, brilhando suavemente
Com flores de maçãs nos cabelos
Ela me chamou pelo meu nome e correu
E desapareceu no ar, como um brilho mais forte.
Talvez eu esteja cansado de vagar em meus caminhos
Por tantas terras cheias de cavernas e colinas,
Eu vou encontrar o lugar para onde ela se foi,
E beijar seus lábios e segurar suas mãos;
Caminharemos entre coloridas folhagens,
E ficaremos juntos até o tempo do fim do tempo, colhendo
As prateadas maçãs da lua,
As douradas maçãs do sol.


William Butler Yeats

quarta-feira, junho 17

Você Pode Ir Na Janela


Você Pode Ir Na Janela
Gram
Sérgio Guilherme Filho

Se não vai
Não desvie a minha estrela
Não desloque a linha reta

Você só me fez mudar
Mas depois mudou de mim
Você quer me biografar
Mas não quer saber do fim

Mas se vai

Você pode ir na janela
Pra se amorenar no sol
Que não quer anoitecer

E ao chegar no meu jardim
Mostro as flores que falei

Vai sem duvidar
Mas se ainda faz sentindo, vem
Até se for bem no final
Será mais lindo

Como a canção que um dia fiz
Pra te brindar

Você pode ir na janela
Pra se amorenar no sol
Que não quer anoitecer
E ao chegar no meu jardim
Mostro as flores que falei


Você só me fez mudar
Mas depois mudou de mim


Eis Minha Amada


Oswaldo Antônio Begiato




Com mãos faceiras e hábeis
Tomou seus versos impuros e sovados
Lavando-os com água fresca e amaciante.
A mais amante.


Pelo avesso,
Para que eles não perdessem suas rimas,
Entregou-os ao sol, através de varais fincados nos quintais,
Para que fossem iluminados com a luz da estrela.
Era tão bonito vê-la.


Enxutos, passou-os sob ferro em brasa
Borrifando neles perfumes feitos com extrato de flores
E lhes conferiu vincos impecáveis.
Poder-se-ia senti-los sem pecados.


Feito isso, limpos e ordenados,
Guardou-os nas muitas gavetas de meu livro de cabeceira.


Fez-me apaixonado.

Mel Do Sol




O verão chegou trazendo a voz
Da paixão que escorre mel do sol
E incêndeia o nosso coração,
Menino
Brincando na areia.
Que o verão saiba cuidar de nós
Passageiros como a luz do sol
Que incêndeia o nosso coração,
Menino
Brincando na areia.
Madrepérola de cores vãs
No vitral insone das manhãs
Que eu vi passar enquanto o mar
Menino
Brincava na areia.
Que a paixão saiba cuidar de nós
Que você beba do mel do sol
E que a sombra que o verão trará
Possa descansar seu corpo
Menino
Brincando na areia.
O verão chegou trazendo a voz
Da paixão que escorre mel do sol
E incêndeia o nosso coração,
Menino
Brincando na areia.

Oswaldo Montenegro






No tempo em que eu me via paladino,
cobrindo em aço o rosto e abdômen,
pensava ser um homem e era um menino.
Agora, quando os medos me consomem,
e incerto mais parece o meu destino,
eu penso ser menino e sou um homem.


Antoniel Campos
Longe de ti são ermos os caminhos,
Longe de ti não há luar nem rosas;
Longe de ti há noites silenciosas,
Há dias sem calor, beirais sem ninhos!

Florbela Espanca


Em que língua se diz, em que nação,
Em que outra humanidade se aprendeu
A palavra que ordene a confusão
Que neste remoinho se teceu?
Que murmúrio de vento, que dourados
Cantos de ave pousada em altos ramos
Dirão, em som, as coisas que, calados,
No silêncio dos olhos confessamos?


(saramago)

dá-me uma ave para voar azul
ou uma asa ardente em meus lábios
para retornar à casa esquecida
uma casa feita de silêncio com a luz do espaço
varandas e portas viradas para o sul do sol
e janelas cúmplices rasgadas com a face da lua
ouço na lonjura a alva música
do tear dos céus / comigo cruzam
os umbrais dilacerados
da página
azul
o meu corpo move-se lento / é um enorme navio
desliza sobre grandes toalhas de vento e sal
o Teu nome está escrito por dentro /
escrevo-Te bilhetes na alma dos espelhos


( maria azenha )



Harmonioso vulto que em mim se dilui.
Tu és o poema e és a origem donde ele flui.
Intuito de ter. Intuito de amor
não compreendido.
Fica assim amor. Fica assim intuito.
Prometido.

(Natália Correia
)





Tu és como o rosto das rosas:
diferente em cada pétala.
Onde estava o teu perfume? Ninguém soube.
Teu lábio sorriu para todos os ventos
e o mundo inteiro ficou feliz.

(Cecília Meireles)

Com agulhas de prata
de brilho tão fino
bordai as sedas do vosso destino.
Bordai as tristezas
de todos os dias
e repentinamente as alegrias.
Que fiquem as sedas
muito primorosas
mesmo com lágrimas presas nas rosas.
Com agulhas de prata
de brilho tão frio...
ai, bordai as sedas, sem partir o fio!

¬ Cecília Meireles ¬

segunda-feira, junho 15


Há alguns dias, Deus — ou isso que chamamos assim, tão descuidadamente, de Deus —, enviou-me certo presente ambíguo: uma possibilidade de amor. Ou disso que chamamos, também com descuido e alguma pressa, de amor. E você sabe a que me refiro.

Antes que pudesse me assustar e, depois do susto, hesitar entre ir ou não ir, querer ou não querer — eu já estava lá dentro. E estar dentro daquilo era bom. Não me entenda mal — não aconteceu qualquer intimidade dessas que você certamente imagina. Na verdade, não aconteceu quase nada.

Por trás do que acontecia, eu redescobria magias sem susto algum. E de repente me sentia protegido, você sabe como: a vida toda, esses pedacinhos desconexos, se armavam de outro jeito, fazendo sentido. Nada de mal me aconteceria, tinha certeza, enquanto estivesse dentro do campo magnético daquela outra pessoa. Os olhos da outra pessoa me olhavam e me reconheciam como outra pessoa, e suavemente faziam perguntas, investigavam terrenos: ah você não come açúcar, ah você não bebe uísque, ah você é do signo de Libra. Traçando esboços, os dois. Tateando traços difusos, vagas promessas.

Nunca mais sair do centro daquele espaço para as duras ruas anônimas. Nunca mais sair daquele colo quente que é ter uma face para outra pessoa que também tem uma face para você, no meio da tralha desimportante e sem rosto de cada dia atravancando o coração.
De mais a mais, eu não queria. Seria preciso forjar climas, insinuar convites, servir vinhos, acender velas, fazer caras. Para talvez ouvir não. A não ser que soprasse tanto vento que velejasse por si. Não velejou. Além disso, sem perceber, eu estava dentro da aprendizagem solitária do não-pedir. Só compreendi dias depois, quando um amigo me falou — descuidado, também — em pequenas epifanias. Miudinhas, quase pífias revelações de Deus feito jóias encravadas no dia-a-dia.

Era isso — aquela outra vida, inesperadamente misturada à minha, olhando a minha opaca vida com os mesmos olhos atentos com que eu a olhava: uma pequena epifania. Em seguida vieram o tempo, a distância, a poeira soprando. Mas eu trouxe de lá a memória de qualquer coisa macia que tem me alimentado nestes dias seguintes de ausência e fome. Sobretudo à noite, aos domingos. Recuperei um jeito de fumar olhando para trás das janelas, vendo o que ninguém veria.

Atrás das janelas, retomo esse momento de mel e sangue que Deus colocou tão rápido, e com tanta delicadeza, frente aos meus olhos há tanto tempo incapazes de ver: uma possibilidade de amor. Curvo a cabeça, agradecido. E se estendo a mão, no meio da poeira de dentro de mim, posso tocar também em outra coisa. Essa pequena epifania. Com corpo e face. Que reponho devagar, traço a traço, quando estou só e tenho medo. Sorrio, então. E quase paro de sentir fome.

Caio F. Abreu

domingo, junho 14

Versos da Bela Adormecida



Lá longe, muito longe, ai muito longe!, ao fundo
De areias e gelos do cabo do mundo,
Depois de ralos, aflições, suores, dragões, ciladas, perigos,
E bosques tenebrosos, antigos, antigos,


Sonhei que ela me espera, adormecida
Desde o começo da vida,
Nua, deitada sobre as tranças de oiro,
Guardada para mim como um tesoiro.


Sonhei que um nimbo argênteo a veste,
Raiando o céu de norte a sul, de leste a oeste,
E que sobre ela paira o silencio profundo
Dos gelos e areias do cabo do mundo…


No seu lábio, um sorriso ainda transido
Ficou, como na boca das estátuas, esculpido,
Esperando, talvez, para raiar,
Que ela suba as pestanas devagar…


Vi uma vez, em sonhos vi, que as pálpebras se erguiam,
Sim, devagar…, sim, devagar…, e que os seus lábios me diziam,
Estendidos para mim:
_«Chegaste?, chegaste enfim?!»


E eu soluçava: _«Sim, sou eu…!
«Mas tu…, és tu, bem tu, Porta do Céu?!
«És tu, ou não és mais que mais uma miragem
«Das tantas que encontrei pela viagem?


«Ai, que de vezes já supus que te possuía
«Em uma imagem que afinal era vazia, era vazia!
«E que longe, afinal, te não te venho encontrar,
«Que passei ermos, passei montes, passei pegos, passei mar…»


Foi isto em sonhos. Acordado, eu perguntava:_«Que farei?
«Aonde… a que longe irei,
«Para que vos atinja, ó silêncios sem fundo
«De areias e gelos do cabo do mundo?


«Anjos, demónios, serafins de asas de lanças, e cabelos
«De chamas e serpentes aos novelos,
«Génios que em sonhos guiais!:
«Já me não bastam sonhos! Quero mais.


«Quero, através seja de que desertos,
«Chegar a ver, com olhos bem despertos,
«O resplendor que sei que a veste,
«Raiando o céu de norte a sul, de leste a oeste…»


Assim falei. Ninguém, porém me mostrou ter ouvido.
Meu grito, além, extinguiu já perdido…
E eu morro deste ardor, que nada acalma,
Com que aspiro debalde à minha própria alma.

José Régio