sexta-feira, junho 6
Alma lavada
Lavo a alma
Lavo a alma bem lavada
Lavo a alma
Lavo com omo total
Lavo a alma
Lavo a alma bem lavada
Lavo a alma
Escovo e passo fio dental
Enxáguo, esfrego
Enxáguo, esfrego
Enxugo e passo talco de neném
Quero a alma
Quero a alma renovada
Lavo a alma
Lavo e esfrego com varsol
Quero a alma
Quero a alma renovada
Lavo a alma
Lavo e seco no varal
Enxáguo, esfrego
Enxáguo, esfrego
Enxugo e passo a ferro muito bem
Alma lavada, alma lavada
Dessa vida não se leva nada
Dessa vida não se leva nada
Lavo a alma
Lavo a alma bem lavada
Lavo a alma
Lavo com sabão em pó
Lavo a alma
Lavo a alma bem lavada
Lavo a alma
Lavo e esfrego sem ter dó
Enxáguo, esfrego
Enxáguo, esfrego
Enxugo e passo talco de neném
Quero a alma
Quero a alma bem lavada
Lavo a alma
Lavo e passo pinho sol
Quero a alma
Quero a alma renovada
Lavo a alma
Lavo e seco no quintal
Enxáguo, esfrego
Enxáguo, esfrego
Enxugo e passo a ferro muito bem
Alma lavada, alma lavada
Dessa vida não se leva nada
Dessa vida não se leva nada
Titãs
O Guardador de Rebanhos
A Criança Eterna acompanha-me sempre.
A direção do meu olhar é o seu dedo apontando.
O meu ouvido atento alegremente a todos os sons
São as cócegas que ela me faz, brincando, nas orelhas.
Damo-nos tão bem um com o outro
Na companhia de tudo
Que nunca pensamos um no outro,
Mas vivemos juntos e dois
Com um acordo íntimo
Como a mão direita e a esquerda.
Ao anoitecer brincamos as cinco pedrinhas
No degrau da porta de casa,
Graves como convém a um deus e a um poeta,
E como se cada pedra
Fosse todo um universo
E fosse por isso um grande perigo para ela
Deixá-la cair no chão.(...)
(Alberto Caeiro)
Deus de Encomenda
é urgente
arranjem-me um deus
não um deus qualquer
que eu sou exigente
um deus nascido de fêmea-mulher
e que não tenha igreja
nem more num altar
um deus que fique onde eu o veja
um deus com quem possa falar
não precisa refulgir de luz
não é pra pendurar
nem pregar na cruz
que importa se a mãe for prostituta
e o pai falsário
eu quero um deus que vá à luta
que sofra
que transpire por um salário
que comigo beba um copo ao sol poente
que me ajude a nadar contra a corrente
e quando eu estiver próximo do fim
nessa névoa doce junto ao mar
que tenha sido o deus em que eu soube acreditar
sabendo que ele
sempre
acreditou em mim
arranjem-me um deus!
poema de, J. M. Restivo Braz
Acredito
"E de novo acredito que nada do que é importante
se perde verdadeiramente.
Apenas nos iludimos,
julgando ser donos das coisas, dos instantes e
dos outros.
Comigo caminham todos os mortos
que amei, todos os amigos que se afastaram,
todos os dias felizes que se apagaram.
Não perdi
nada, apenas a ilusão de que tudo podia ser meu
para sempre."
(Miguel Sousa Tavares
Poema da árvore
As árvores crescem sós. E a sós florescem.
Começam por ser nada. Pouco a pouco
se levantam do chão, se alteiam palmo a palmo.
Crescendo deitam ramos, e os ramos outros ramos,
e deles nascem folhas, e as folhas multiplicam-se.
Depois, por entre as folhas, vão-se esboçando as flores,
e então crescem as flores, e as flores produzem frutos,
e os frutos dão sementes,
e as sementes preparam novas árvores.
E tudo sempre a sós, a sós consigo mesmas.
Sem verem, sem ouvirem, sem falarem.
Sós.
De dia e de noite.
Sempre sós.
Os animais são outra coisa.
Contactam-se, penetram-se, trespassam-se,
fazem amor e ódio, e vão à vida
como se nada fosse.
As árvores não.
Solitárias, as árvores,
exauram terra e sol silenciosamente.
Não pensam, não suspiram, não se queixam.
Estendem os braços como se implorassem;
com o vento soltam ais como se suspirassem;
e gemem, mas a queixa não é sua.
Sós, sempre sós.
Nas planícies, nos montes, nas florestas,
a crescer e a florir sem consciência.
Virtude vegetal viver a sós
e entretanto dar flores.
António Gedeão
quinta-feira, junho 5
(...)
A minha herança pra você é uma flor
Um sino, uma canção, um sonho
Nenhuma arma ou uma pedra eu deixarei
A minha herança pra você é o amor
Capaz de fazê-lo tranquilo, pleno
Reconhecendo no mundo o que há em si
E hoje nos lembramos sem nenhuma tristeza
Dos foras que a vida nos deu
Ela com certeza
Estava juntando você e eu
Achei você no meu jardim
(...)
Vanessa da Mata . "Minha Herança: Uma flor"
Meu pé de laranja lima
Está bem grande...
"— Mas que lindo pezinho de Laranja Lima! Veja que não tem nem um espinho.
Ele tem tanta personalidade que a gente de longe já sabe que é Laranja Lima. Se eu fosse do seu tamanho, não queria outra coisa.
— Mas eu queria um pé de árvore grandão.
— Pense bem, Zezé. Ele é novinho ainda. Vai ficar um baita pé de laranja. Assim ele vai crescer junto com você. Vocês dois vão se entender como se fossem dois irmãos.
Você viu o galho? É verdade que o único que tem, mas parece até um cavalinho feito pra você montar.
Estava me sentindo o maior desgraçado da vida. (...)... Sempre eu tinha que ser o último.
Quando crescesse iam ver só. Ia comprar uma selva amazónica e todas as árvores que tocavam no céu, seriam minhas.(...)
Emburrei. Sentei no chão e encostei a minha zanga no pé de Laranja Lima. Glória se afastou sorrindo.
— Essa zanga não dura, Zezé. Você vai acabar descobrindo que eu tinha razão.
Cavouquei o chão com um pauzinho e começava a parar de fungar. Uma voz falou vindo de não sei onde, perto do meu coração.
— Eu acho que sua irmã tem toda a razão.
— Sempre todo mundo tem toda a razão. Eu é que não tenho nunca.
— Não é verdade. Se você me olhasse bem, você acabava descobrindo.
Eu levantei assustado e olhei a arvorezinha. Era estranho porque sempre eu conversava com tudo, mas pensava que era o meu passarinho de dentro que se encarregava de arranjar fala.
— Mas você fala mesmo?
— Não está me ouvindo?
E deu uma risada baixinha. Quase saí aos berros pelo quintal. Mas a curiosidade me prendia ali.
— Por onde você fala?
— Árvore fala por todo canto. Pelas folhas, pelos galhos, pelas raízes. Quer ver? Encoste seu ouvido aqui no meu tronco que você escuta meu coração bater. Fiquei meio indeciso, mas vendo o seu tamanho, perdi o medo. Encostei o ouvido e uma coisa longe fazia tique... tique...
— Viu?
— Me diga uma coisa. Todo mundo sabe que você fala?
— Não. Só você.
— Verdade?
— Posso jurar. Uma fada me disse que quando um menininho igualzinho a você ficasse meu amigo, que eu ia falar e ser muito feliz.
— E você vai esperar?
— O quê?
— Até eu me mudar. Vai demorar mais de uma semana. Será que você não vai se esquecer de falar nesse tempo?
— Nunca mais. Isto é, para você só. Você quer ver como eu sou macio?
— Como é que...
— Monte no meu galho. Obedeci.
— Agora, dê um balancinho e feche os olhos.
Fiz o que mandou.
— Que tal? Você alguma vez na vida teve cavalinho melhor?
— Nunca. É uma delícia. Até vou dar o meu cavalinho Raio de Luar para meu irmão menor. Você vai gostar muito dele, sabe?
Desci adorando o meu pé de Laranja Lima.
— Olhe, eu vou fazer uma coisa. Sempre quando puder, antes de mudar, eu venho dar uma palavrinha com você... Agora preciso ir, já estão de saída lá na frente.
— Mas, amigo não se despede assim.
— Psiu! Lá vem ela.
Glória chegou mesmo na hora em que eu o abraçava.
— Adeus, amigo. Você é a coisa mais linda do mundo!
— Não falei a você?
— Falou, sim Agora se vocês me dessem a mangueira e o pé de tamarindo em troca da minha árvore, eu não queria.
Ela passou a mão nos meus cabelos, ternamente.
— Cabecinha, cabecinha!...
Saímos de mãos dadas.
— Godóia, você não acha que sua mangueira é meio burrona?
— Ainda não deu para saber, mas parece um pouco.
— E o pé de tamarindo de Totoca?
— É meio sem jeitão, por quê?
— Não sei se posso contar."
José Mauro de Vasconcelos . " O Meu Pé de Laranja Lima"
Pó de estrelas
quarta-feira, junho 4
Fatalismo
Manuela Amaral
Amo o que em ti há de trágico. De mau.
Amo o veneno dos teus beijos. O teu hálito pagão.
E esta tua ausência
Amo o que em ti há de trágico. De mau.
De sublime.Amo o crime escondido no teu andar.
A tua forma de olhar. O teu riso fingido
e cristalino.
Amo o veneno dos teus beijos. O teu hálito pagão.
A tua mão insegura
na mentira dos teus gestos.
Amo o teu corpo de maçã madura
.
Amo o silêncio perpendicular do teu contato
A fúria incontrolável da maré
nas ondas vaginais do teu orgasmo.
E esta tua ausência
Este não-ser que é
Preciso, para
Marina Colasanti
Preciso que um barco atravesse o mar
Preciso que uma proa atravesse a carne
Preciso que um barco atravesse o mar
lá longe
para sair dessa cadeira
para esquecer esse computador
e ter olhos de sal
boca de peixe
e o vento frio batendo nas escamas.
Preciso que uma proa atravesse a carne
cá dentro
para andar sobre as águas
deitar nas ilhas e olhar de longe esse prédio
essa sala
essa mulher sentada diante do computador
que bebe a branca luz eletrônica
e pensa no mar.
A todos...
Martha Medeiros
a todos trato muito bem
sou cordial, educada, quase sensata
mas nada me dá mais prazer
do que ser persona non grata
expulsa do paraíso
uma mulher sem juízo, que não se comove
com nada
cruel e refinada
que não merece ir pro céu, uma vilã de novela
mas bela, e até mesmo culta
estranha, com tantos amigos
e amada, bem vestida e respeitada
aqui entre nós
melhor que ser boazinha e não poder ser imitada
Desperta-me de noite
Maria Tereza Horta
Desperta-me de noite
O teu desejo
Na vaga dos teus dedos
Com que vergas
O sono em que me deito
É rede a tua lingua
Em sua teia
É vicio as palavras
Com que falas
A trégua
A entrega
O disfarce
E lembras os meus ombros
Docemente
Na dobra do lençol que desfazes
Desperta-me de noite
Com o teu corpo
Tiras-me do sono
Onde resvalo
E eu pouco a pouco
Vou repelindo a noite
E tu dentro de mim
Vais descobrindo vales.
Pra me conquistar...
Martha Medeiros
pra me conquistar
basta dizer tudo aquilo
que nunca ouvi de ninguém
vestir como homem e não como gay
me tocar sem medo, sem segredo
entrar e sair da rotina sem que eu note
me levar para lugares exóticos
e lugares comuns
saber ficar em silêncio e assim me dizer tudo
gostar de rock como eu gosto
e de coisas que eu não gosto
compreender a vida como é
e buscar o outro lado
saber a hora exata de ficar
e ir embora
mas não vá
Sabes
vesti-te de palavras
com o perfume da poesia
só para te despir na leitura
José António Gonçalves
Na amizade, muitas vezes, a distância é o lugar mais próximo e de maior proximidade,isto é, onde a presença do outro de tão inteira já não pode ser medida.
Sendo um lugar cheio de saudade, esse é também um lugar feliz, porque aí sem cessar se regressa e avista.
É como o movimento de quem caminha
num espaço alto e estreito:
é preciso separar os braços e desunir as mãos,
para que possa alcançar-se o equilíbrio.
Daniel Faria
segunda-feira, junho 2
AUTENTICIDADE
"...porque as únicas pessoas autênticas, para mim, são as loucas, as que estão loucas por viver, loucas por falar, loucas por serem salvas, desejosas de tudo ao mesmo tempo, as que não bocejam nem dizem nenhum lugar-comum, mas ardem, ardem, ardem como fabulosas grinaldas amarelas de fogo-de-artifício a explodir, semelhantes a aranhas, através das estrelas, e no meio vê-se o clarão azul a estourar e toda a gente exclama
Aaaah!"
Jack Kerouac
"A verdade mora no silêncio que existe em volta das palavras.
Prestar atenção ao que não foi dito, ler as entrelinhas.
A atenção flutua: toca as palavras sem ser por elas enfeitiçada.
Cuidado com a sedução da clareza!
Cuidado com o engano do óbvio!
De todos os sentidos, o mais importante para a aprendizagem do amor,
do viver junto e da cidadania é a audição.
Disse o escritor sagrado: ‘No princípio era o verbo’.
Eu acrescento: ‘Antes do verbo era o silêncio.’
É do silêncio que nasce o ouvir.
Só posso ouvir a palavra, se meus ruídos interiores forem silenciados.
Só posso ouvir a verdade do outro se eu parar de tagarelar.
Quem fala muito não ouve.
Sabem disso os poetas, esses seres de fala mínima.
Eles falam, sim.
Para ouvir as vozes do silêncio."
(Rubem Alves)
La Belle Dame Sans Merci
(...) Uma Dama nos prados encontrei
Formosa em plenitude, filha de fada
(...)
Pousei-a em meu cordel a passo
E durante esse dia mais vi nada
E do lado inclinada ela pendia
E uma canção cantou de fada.
Uma grinalda fiz para a cabeça
E bracelete e laço perfumado
E como se me amasse me fitou
E suave lamento foi lançado.
Para a sua gruta encantada me levou
E lá bem suspirou profundamente
E lá cerrei seus feros tristes olhos
Assim beijados, dormentes, dormentes.
E lá bem me embalou até o sono
E lá sonhei – Ah, mala sina
O último sonho que jamais sonhei
Nesse lado frio da colina.
(...)
(John Keats)As palavras estão muito ditas
e o mundo muito pensado.
Fico ao meu lado.
Não me digas que há futuro nem passado.
Deixa o presente — claro muro
sem coisas escritas.
Deixa o presente. Não fales,
Não me expliques o presente,
pois é tudo demasiado.
Em águas de eternamente,
o cometa dos meus males afunda, desarvorado.
Fico ao meu lado.
-Cecília Meireles
Bolha de sabão é que nem silêncio: a gente pode dizer que não existe. É uma das coisas mais bonitas do mundo: colorida de todas as cores do arco-íris, toda redonda, voando livre, leve e alto. João disse (sem falar) pro menino: a vida da gente pode ser uma bolha de sabão (...). Se a gente aprende a ser colorido, a voar livre, leve e alto até explodir bonito,sem muito barulho, deixando no ar uma gotinha de saudade."
Do livro João Teimoso, de Luiz Raul Machado,
Dicionário educado IV
(...)Eu quis tanto ser a tua paz, Quis tanto que você fosse o meu encontro. Quis tanto dar, tanto receber. Quis precisar, sem exigências. E sem solicitações, aceitar o que me era dado. Sem ir além, compreende? Não queria pedir mais do que você tinha, Assim como eu não daria mais do que dispunha, por limitação humana. Mas o que tinha, era seu.
Caio Fernando Abreu
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