sexta-feira, junho 26
Ela que descobriu o mundo
E sabe vê-lo do ângulo mais bonito
Canta e melhora a vida, descobre sensações diferentes
Sente e vive intensamente
Aprende e continua aprendiz
Ensina muito e reboca os maiores amigos
Faz dança, cozinha, se balança na rede
E adormece em frente à bela vista
Despreocupa-se e pensa no essencial
Dorme e acorda
Conhece a Índia e o Japão e a dança haitiana
Fala inglês e canta em inglês
Escreve diários, pinta lâmpadas, troca pneus
E lava os cabelos com shampoos diferentes
Faz amor e anda de bicicleta dentro de casa
E corre quando quer
Cozinha tudo, costura, já fez boneco de pano
E brinco para a orelha, bolsa de couro, namora e é amiga
Tem computador e rede, rede para dois
Gosta de eletrodomésticos, toca piano e violão
Procura o amor e quer ser mãe, tem lençóis e tem irmãs
Vai ao teatro mas prefere cinema
Nando Reis e Marisa Monte - Gerânio
quinta-feira, junho 25
One love (tradução)
Sara Tavares
Como se diz em inglês
Eu te amo, eu te preciso
Quero dizer também em português
Te amo eu te preciso
E não há nada que levar a mal
Nós somos iguais
Eu sei tu consegues entender-me
Eu gosto muito, muito, muito de ti...
Tu sabes eu te amo, eu te amo, eu te amo, eu realmente
Amo-te, eu te amo,
Tu sabes eu te preciso, eu não consigo viver sem ti, não há ninguém como tu
Não há ninguém como tu
Oi como estás Mana Sara do lado de lá
Eu estou bem e tu como estas Sara Mana do lado de cá
Talvez juntos eu e você,
Eu contigo, tu comigo
Eu e você, eu e tu, tu e eu
Eu sei tu consegues entender-me
Talvez juntos, juntos para sempre felizes
Tu sabes eu te amo, eu te amo, eu te amo, eu realmente
Amo-te, eu te amo,
Tu sabes eu te preciso, eu não consigo viver sem ti, não há ninguém como tu
Não há ninguém como tu
Um só povo, um só coração, um amor
Branco, preto, vermelho, amarelo não tem diferença não
Amar com fé, amar muito, muito amor no coração um amor
Um só povo, um só coração, um amor, amor grande no coração
Do lado de cá da cidade faz muito frio.
Talvez por isso os amigos bebam demais.
Talvez por isso eu sempre cruzo as figuras no cinema.
Do lado de cá da cidade existem acordos fraternos,
talvez por isso as pessoas estão sempre magoadas umas com as outras,
e choram tanto, e escrevem os nomes das outras em folhas amarelas de cadernos,
e bebem tanto.
Do lado de cá da cidade nunca faz sol.
Talvez por isso, tantos blues, tantos blues, e a garrafa de café sempre vazia,
os dedos calejados da máquina de escrever, e o copo de gim pela metade.
Do lado de cá da cidade chove todas as noites,
talvez por isso as pessoas tenham tantas idéias mirabolantes e irrealizáveis,
talvez por isso as mesas no bar estão sempre reservadas, talvez por isso eles bebem tanto.
Do lado de cá da cidade faz frio, existem acordos fraternos, nunca faz sol,
chove todas as noites,
as pessoas bebem demais, e são todas muito sensíveis.
Eu já estive uma vez do outro lado da cidade, só uma vez.
Mário Bortolotto
quarta-feira, junho 24
Dueto
Consta nos astros, nos signos, nos búzios
Eu li num anúncio, eu vi no espelho, tá lá no evangelho, garantem os orixás
Serás o meu amor, serás a minha paz
Consta nos autos, nas bulas, nos dogmas
Eu fiz uma tese, eu li num tratado, está computado nos dados oficiais
Serás o meu amor, serás a minha paz
Mas se a ciência provar o contrário, e se o calendário nos contrariar
Mas se o destino insistir em nos separar
Danem-se os astros, os autos, os signos, os dogmas
Os búzios, as bulas, anúncios, tratados, ciganas, projetos
Profetas, sinopses, espelhos, conselhos
Se dane o evangelho e todos os orixás
Serás o meu amor, serás, amor, a minha paz
Consta na pauta, no Karma, na carne, passou na novela
Está no seguro, picharam no muro, mandei fazer um cartaz
Serás o meu amor, serás a minha paz
Consta nos mapas, nos lábios, nos lápis
Consta nos Ovnis, no Pravda, na Vodca
Chico Buarque
Alguns guardam o Domingo indo à igreja
Eu o guardo ficando em casa
Tendo um sabiá como cantor
E um pomar por santuário.
Alguns guardam o Domingo em vestes brancas
Mas eu só uso minhas asas
E ao invés do repicar dos sinos na igreja
nosso pássaro canta na palmeira.
É Deus que está pregando, pregador admirável
E o seu sermão é sempre curto.
Assim, ao invés de chegar ao Céu, só no final
eu o encontro o tempo todo no quintal.
Emily Dickinson
terça-feira, junho 23
” O menino e seu amiguinho brincavam nas primeiras espumas; o pai fumava um cigarro na praia, batendo papo com um amigo. E o mundo era inocente, na manhã de sol.
Foi então que chegou a Mãe (esta crônica é modesta contribuição ao Dia das Mães), muito elegante em seu short, e mais ainda em seu maiô. Trouxe óculos escuros, uma esteirinha para se esticar, óleo para a pele, revista para ler, pente para se pentear — e trouxe seu coração de Mãe que imediatamente se pôs aflito achando que o menino estava muito longe e o mar estava muito forte.
Depois de fingir três vezes não ouvir seu nome gritado pelo pai, o garoto saiu do mar resmungando, mas logo voltou a se interessar pela alegria da vida, batendo bola com o amigo. Então a Mãe começou a folhear a revista mundana — “que vestido horroroso o da Marieta neste coquetel” — “que presente de casamento vamos dar à Lúcia? tem de ser uma coisa boa” — e outros pequenos assuntos sociais foram aflorados numa conversa preguiçosa. Mas de repente:
— Cadê Joãozinho?
O outro menino, interpelado, informou que Joãozinho tinha ido em casa apanhar uma bola maior.
— Meu Deus, esse menino atravessando a rua sozinho! Vai lá, João, para atravessar com ele, pelo menos na volta!
O pai (fica em minúscula; o Dia é da Mãe) achou que não era preciso:
— O menino tem OITO anos, Maria!
— OITO anos, não, oito anos, uma criança. Se todo dia morre gente grande atropelada, que dirá um menino distraído como esse!
E erguendo-se olhava os carros que passavam, todos guiados por assassinos (em potencial) de seu filhinho.
— Bem, eu vou lá só para você não ficar assustada.
Talvez a sombra do medo tivesse ganho também o coração do pai; mas quando ele se levantou e calçou a alpercata para atravessar os vinte metros de areia fofa e escaldante que o separavam da calçada, o garoto apareceu correndo alegremente com uma bola vermelha na mão, e a paz voltou a reinar sobre a face da praia.
Agora o amigo do casal estava contando pequenos escândalos de uma festa a que fora na véspera, e o casal ouvia, muito interessado — “mas a Niquinha com o coronel? não é possível!” — quando a Mãe se ergueu de repente:
— E o Joãozinho?
Os três olharam em todas as direções, sem resultado. O marido, muito calmo — “deve estar por aí”, a Mãe gradativamente nervosa — “mas por aí, onde?” — o amigo otimista, mas levemente apreensivo. Havia cinco ou seis meninos dentro da água, nenhum era o Joãozinho. Na areia havia outros. Um deles, de costas, cavava um buraco com as mãos, longe.
— Joãozinho!
O pai levantou-se, foi lá, não era. Mas conseguiu encontrar o amigo do filho e perguntou por ele.
— Não sei, eu estava catando conchas, ele estava catando comigo, depois ele sumiu.
A Mãe, que viera correndo, interpelou novamente o amigo do filho. “Mas sumiu como? para onde? entrou na água? não sabe? mas que menino pateta!” O garoto, com cara de bobo, e assustado com o interrogatório, se afastava, mas a Mãe foi segurá-lo pelo braço: “Mas diga, menino, ele entrou no mar? como é que você não viu, você não estava com ele? hein? ele entrou no mar?”.
— Acho que entrou… ou então foi-se embora.
De pé, lábios trêmulos, a Mãe olhava para um lado e outro, apertando bem os olhos míopes para examinar todas as crianças em volta. Todos os meninos de oito anos se parecem na praia, com seus corpinhos queimados e suas cabecinhas castanhas. E como ela queria que cada um fosse seu filho, durante um segundo cada um daqueles meninos era o seu filho, exatamente ele, enfim — mas um gesto, um pequeno movimento de cabeça, e deixava de ser. Correu para um lado e outro. De súbito ficou parada olhando o mar, olhando com tanto ódio e medo (lembrava-se muito bem da história acontecida dois a três anos antes, um menino estava na praia com os pais, eles se distraíram um instante, o menino estava brincando no rasinho, o mar o levou, o corpinho só apareceu cinco dias depois, aqui nesta pr aia mesmo!) — deu um grito para as ondas e espumas — “Joãozinho!”.
Banhistas distraídos foram interrogados — se viram algum menino entrando no mar — o pai e o amigo partiram para um lado e outro da praia, a Mãe ficou ali, trêmula, nada mais existia para ela, sua casa e família, o marido, os bailes, os Nunes, tudo era ridículo e odioso, toda essa gente estúpida na praia que não sabia de seu filho, todos eram culpados — “Joãozinho !” — ela mesma não tinha mais nome nem era mulher, era um bicho ferido, trêmulo, mas terrível, traído no mais essencial de seu ser, cheia de pânico e de ódio, capaz de tudo — “Joãozinho !” — ele apareceu bem perto, trazendo na mão um sorvete que fora comprar. Quase jogou longe o sorvete do menino com um tapa, mandou que ele ficasse sentado ali, se saísse um passo iria ver, ia apanhar muito, menino desgraçado!
O pai e o amigo voltaram a sentar, o menino riscava a areia com o dedo grande do pé, e quando sentiu que a tempestade estava passando fez o comentário em voz baixa, a cabeça curva, mas os olhos erguidos na direção dos pais:
— Mãe é chaaata… “
Maio, 1953
Rubem Braga
A mudança
A alegre, a festiva agitação das panelas, tachos
A inútil zanga dos velhos armários de mogno, solenes,
achando tudo aquilo uma grande palhaçada...
As xícaras e pires fazendo tlin-tlin-tlin-tlin
As gaiolas dos passarinhos cantando em coro com os próprios passarinhos
Oh! Alegria das coisas com aquela mudança
Para onde? Não importa! Desque não seja
esse eterno mesmo lugar!
Mário Quintana
Tudo tão nítido! O céu rentinho às pedras. Pode-se enxergar até os nomes que andaram traçando a carvão naquele muro. Mas mesmo que o céu soubesse ler, isso não teria agora a mínima importância. E sente-se que Nosso Senhor, em comemoração de abril, instituirá hoje valiosos prêmios para o riso mais despreocupado, para o sapato mais rinchador, para a pandorga mais alta sobre o morro.
Mario Quintana
Uma vez eu estava conversando com amigos e a conversa chegou naquele estágio em que só há duas opções: ou ir para casa dormir ou cair na bobagem. Caímos na bobagem. Afinal é para isso que servem os amigos. Depois de nos propormos vários desafios do tipo “quem era que melhor gritava de pavor no cinema?” (a Barbara Stanwyck ganhou fácil), chegamos a uma daquelas questões definitivas e definidoras. Qual é a melhor sensação do mundo? As respostas variaram, desde “banho quente” até “acordar cedo, começar a sair da cama e então lembrar que é feriado”, passando, claro, por outras menos publicáveis. Mas aí um amigo disse duas palavras que liquidaram a questão. – Caderno novo. Todos concordaram. Não foi preciso nem entrar em detalhe, dizer “a sensação de abrir um caderno novo, no primeiro dia de escola, e alisar com a ponta dos dedos a página vazia, sentindo o volume de todas as páginas vazias por trás dela, aquele mundo de coisas ainda não escritas…E o cheiro do caderno!” Não houve um que não concordasse que nenhuma sensação do mundo se igualava àquela. Caderno novo também nos provocava uma certa solenidade, lembra? Diante de sua limpeza, fazíamos um juramento silencioso que aquele ano seríamos alunos perfeitos. E realmente caprichávamos ao preencher o caderno novo com cuidado respeitoso. Pelo menos até a quarta ou quinta página, quando então voltávamos a ser os mesmos relaxados do ano anterior. Mesmo porque aí o caderno não era mais novo.
Luis Fernando Veríssimo
Bernardo é quase árvore.
Silêncio dele é tão alto que os passarinhos ouvem de longe.
E vêm pousar em seu ombro.
Seu olho renova as tardes.
Guarda num velho baú seus instrumentos de trabalho:
um abridor de amanhecer
um prego que farfalha
um encolhedor de rios – e
um esticador de horizontes.
(Bernardo consegue esticar o horizonte usando três fios de teias de aranha. A coisa fica bem esticada).
Bernardo desregula a natureza:
Seu olho aumenta o poente.
(Pode um homem enriquecer a natureza com a sua incompletude?)
Manoel de Barros
segunda-feira, junho 22
Escreve um poema
Mergulha no branco
Entra no improvável
Sê humilde
Não penses no que sabes
Esquece o que sentes
Sente
Se não sentes tira a roupa
Bebe água
Pinta um quadro
Esquece as cores que conheces
Imagina cores
Troca-lhes a lógica
Segue
Persegue
Respira debaixo da água do quadro
Transpira
Bebe água
Bebe mais água
Grita
Chora
Chora pela tua mãe
No teu sonho
Ela vem buscar-te
Inspira
Expira
Continua a pintar
Pinta até que o dia nasça no quadro
É difícil
Então mergulha mais fundo
Até veres os peixes
Ouve os seus lamentos
Eles também nadam neles
Não há só água no seu oceano..
No teu também não há só sorte ou amor ou lógica
Há contradições
Por isso não nades só..
Também mergulha
Mergulhar é fugir
Sem que a fuga seja cobarde.
Tiago Nené
É quando um espelho, no quarto,
se enfastia;
Quando a noite se destaca
da cortina;
Quando a carne tem o travo
da saliva,
e a saliva sabe a carne
dissolvida;
Quando a força de vontade
ressuscita;
Quando o pé sobre o sapato
se equilibra…
E quando às sete da tarde
morre o dia
- que dentro de nossas almas
se ilumina,
com luz lívida, a palavra
despedida.
David Mourão-Ferreira
domingo, junho 21
Intimidade
Quando, sorrindo, vais passando, e toda
Essa gente te mira cobiçosa,
És bela - e se te não comparo a rosa,
É que a rosa, bem vês, passou de moda...
Anda-me às vezes a cabeça a roda,
Atrás de ti também, flor caprichosa!
Nem pode haver, na multidão ruidosa,
Coisa mais linda, mais absurda e doida.
Mas é na intimidade e no segredo,
Quando tu coras e sorris a medo,
Que me apraz ver-te e que te adoro, flor!
E não te quero nunca tanto (ouve isto)
Como quando por ti, por mim, por Cristo, juras
- mentindo - que me tens amor...
Antero de Quental
Primeiro foram os dedos
Primeiro foram os dedos
que travaram conhecimento.
Depois os olhos pousaram-me
na mão e levaram-na a percorrer
a curva da cintura. E a sua boca
procurou a minha boca
sem sobressaltos e deixou-a depois
para percorrer o meu corpo.
É assim a descoberta do poeta,
apesar de tudo se passar na sua cabeça,
dando origem a mais um poema.
Maria Carlos Loureiro
Ai, Senhor, quero ser simples. E tão banal
que até os passarinhos reconheçam
e, sem estranhamento, pousem perto.
Quero ser a que Deus quase esquece,
alma quieta sob o Seu comando,
apenas uma ovelha no rebanho que o segue.
Ai, Senhor, quero ser doce. E tão sutil
que nenhum som se mova em minha voz,
e que ela caia no ar com a leveza de uma folha.
Quero ser aquela de quem Deus não espera
nada de grandioso, o filho mais fraco
e amoroso, a quem Ele lança o olhar mais terno.
Ai, Senhor, quero ser simples e doce. E tão banal e tão sutil
que a violência jamais enxergue o meu rosto no tumulto do mundo.
Canção
(Murilo Mendes)
"viram pela janela que estava caindo uma chuvinha de minúsculas flores amarelas. Caíram por toda a noite sobre o povoado, numa tempestade silenciosa, e cobriram os tectos e taparam as portas, e sufocaram os animais que dormiam ao relento.
Tantas flores caíram do céu que as ruas amanheceram atapetadas por uma colcha compacta, e eles tiveram que abrir caminho com pás e ancinhos para que o enterro pudesse passar."
Gabriel Garcia Marques . "Cem anos de solidão"