terça-feira, junho 17
Hoje eu quereria apenas abrir um álbum antigo de fotografias, onde não houvesse gente de olhos duros e mãos aduncas. Onde umas boas senhoras pousassem no papel com delicadeza, nãopara sobreviverem eternamente, mas para mandarem seu retrato às amigas com finas letras de "sincera afeição". Um álbum onde aparecessem uns bons velhotes que não faziam negociatas, que não sabiam multiplicar dinheiro, que usavam roupas desajeitadas, sofriam de reumatismo, liam Vírgilio e Horácio, e não tinham medo dos fantasmas do porão.
(...)
Hoje eu quereria ler uns livros que não falam de gente, mas só de bichos,
de plantas, de pedras: um livro que me levasse por essas solidões da Natureza,
sem vozes humanas, sem discursos, boatos, mentiras, calúnias, falsidades,
elogios, celebrações...
Hoje eu quereria apenas ver uma flor abrir-se, desmanchar-se, viver sua existência autêntica,
integral, do nascimento à morte, muito breve, sem borboletas nem abelhas de permeio.
Uma existência total, no seu mistério (e antes da flor? -- não sei) (e depois da flor? -- não sei).
Esta ignorância humana. Este silêncio do universo. A sabedoria.
Hoje eu quereria estar entre as nuvens, na velocidade das nuvens, na sua fragilidade, na sua docilidade de ser e deixar ser. Livremente. Sem interesse próprio. Confiantes. À mercê da vida. Sem nenhum sonho de durarem um pouco mais, de ficarem no céu até o ano 2000, de terem emprego público, férias, abono de Natal, montepio, prêmio de loteria, discurso à beira do túmulo, nome em placa de rua, buasto no jardim...
(...)
Hoje eu quereria estar no deserto amarelo, sem beduíno, camelo ou rebanho de cabras:
no puro deserto amarelo onde só reina o vento grandioso que leva tudo,
que não precisa nem de água, nem de areia, nem de flor, nem de pedra, nem de gente.
O vento solitário que vai para longe de mãos vazias.
Hoje eu queria ser esse vento!
Compensação, de Cecília Meireles
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